O CONFLITO NA UCRÂNIA COMO UMA ESTRATÉGIA CONJUNTA DE RÚSSIA E CHINA
- rafaelpupomaia
- 23 de dez. de 2022
- 10 min de leitura
Como já citado no post anterior, a Rússia perpetra uma guerra de desgaste na Ucrânia com o objetivo de drenar os recursos advindos do Ocidente, enfraquecendo-os nos aspectos econômicos e militares. Nesse contexto amplo, o conflito na Ucrânia realmente não é uma guerra na visão russa, mas sim uma operação militar visando fins no curto e no longo prazo. A Rússia não se mobilizou completamente para uma guerra total, mas direcionou uma parte de sua força para um ataque estratégico e local.
A China é um importante player nesse cenário, visto sua estratégica parceria com a Rússia na esfera econômica, militar e política. Pequim se recusou a condenar publicamente Moscou pela invasão e intensificou suas parcerias econômicas com a Rússia, em um momento em que grande parte dos países aplicavam sanções econômicas à Moscou.
Por mais que o Estado russo tenha se preparado econômica e militarmente para este momento específico, foi necessário auxílio de um grande parceiro comercial que partilhasse do mesmo objetivo que o Kremlin. Neste contexto, a China se configurou como este parceiro. Pequim não esconde sua pretensão de ser a potência hegemônica no Sistema Internacional, assim como a Rússia tenta se recolocar no patamar de uma potência influenciadora no mundo, como outrora foi a União Soviética.
A China enxerga na Rússia a oportunidade de desbancar os EUA como potência no Sistema Internacional. A Rússia é dona do maior território do mundo, com inúmeros recursos naturais, além de ser uma potência na área militar e tecnológica. Por sua vez, a China é a segunda maior economia do mundo, sendo o principal polo manufatureiro e o maior mercado consumidor do planeta. Como ocorrera com os equipamentos militares[1], a questão energética[2] e com a criação do Sistema de Transferências de Mensagens Financeiras (SPFS)[3], a China tem muito a se beneficiar com a aproximação com Moscou.
Sob a administração Biden, a China ampliou sua presença comercial no importante território da América Latina. Segundo análise da Reuters sobre os dados comerciais da ONU (2015-2021), a China além de ultrapassar os EUA na região, aumentou a diferença ano passado. É extremamente importante analisar este dado, uma vez que os EUA sempre consideraram a América Latina “seu quintal", não permitindo perder sua influência sobre a região. Percebe-se que a China está dominando economicamente certas regiões estratégicas e que historicamente tiveram sob tutela de Washington, como a América Latina e a África.
A aproximação Moscou-Pequim já vem sendo executada por anos. No entanto, viu-se uma intensificação na aproximação dos países. Observa-se no momento que a aliança sino-russa está confrontando a hegemonia dos EUA no setor econômico, político e militar. Supõe-se que o movimento feito por Moscou foi o início de uma estratégia conjunta para iniciar a transição de hegemonia.
Isso fica claro quando o presidente Biden faz sua primeira visita à Ásia no final de maio. Nesta viajem, o presidente norte-americano teve o encontro de líderes do Diálogo de Segurança Quadrilateral (Quad), onde participam Estados Unidos, Austrália, Índia e Japão. A visita visava tratar sobre questões de segurança que envolviam a área disputada do Mar do Sul da China, além de acordos comerciais com países asiáticos. O que mostra que os EUA estão tentando aumentar sua influência na região face a expansão chinesa.
No dia 23 de maio, quando Biden estava em Tóquio, ele afirmou que os EUA estavam dispostos a responder militarmente a uma invasão chinesa em Taiwan. O fato enfureceu Pequim, uma vez que a China considera Taiwan uma “província rebelde”. Além disso, um estadista deve ser cuidadoso com suas palavras, ainda mais em um momento tão delicado em que o mundo está atravessando.
A resposta sino-russa veio em conjunto no dia 24 de maio. Segundo Seul, dois bombardeiros chineses H-6 e dois bombardeiros russos TU-95 sobrevoaram a zona defesa aérea da Coreia do Sul. Ambos os bombardeiros apresentam capacidade de transportar armamentos nuclear. O fato de prontamente a Força Aérea chinesa e a Força Aeroespacial russa terem entrado na zona aérea de identificação da Coreia do Sul com o presidente do EUA em tour pela Ásia, indica alguns pontos interessantes: a resposta em uma ação militar dissuasória conjunta entre os países; a prontidão das Forças Armadas chinesas e russas; a defasada resposta da Coreia do Sul e Japão frente a tamanha ameaça. Além de ameaçar o próprio presidente Biden, que estava em uma região que os russos e os chineses fizeram questão de mostrar força.
Outro ponto interessante é a prontidão da Força Aeroespacial russa. Se a Rússia enxergasse o conflito na Ucrânia como uma guerra de sobrevivência, empregando grande parte de sua força no conflito, dificilmente o Kremlin teria a capacidade de prontamente colocar em alerta outros recursos em sua parte oriental ou arriscaria seus preciosos recursos em uma ação de dissuasão.
Os EUA têm se esforçado para aumentar sua influência militar na região asiática. A criação da AUKUS é um exemplo claro disso. A AUKUS é um acordo militar entre EUA, Reino Unido e Austrália que visa manter a segurança no Indo-Pacífico e conter a expansão militar chinesa na região. O Quad e a AUKUS são condenados pela China, que já afirmou que os EUA tentam estabelecer uma versão asiática da OTAN.
Nesse contexto, China e Rússia tem se unido em uma estratégia maior para minar a hegemonia dos EUA. A guerra de desgaste empregada pela Rússia está em comum acordo com a China, pois está drenando valiosos recursos dos EUA e seus parceiros europeus. Dado o cenário macro, é possível suspeitar que o principal cenário de operações não será na Europa, mas sim na Ásia. A guerra na Ucrânia está desgastando e levando a UE a uma crise sem precedentes, enfraquecendo a OTAN e o principal parceiro norte-americano.
No dia 15 de junho, o presidente Xi Jinping reafirmou seu apoio ao presidente russo Vladimir Putin nas questões de “segurança e soberania”, mostrando um apoio ao seu homólogo russo. O líder chinês “(...) observou a legitimidade das ações tomadas pela Rússia para proteger os interesses nacionais fundamentais diante dos desafios à sua segurança criados por forças externas” (AL JAZEERA, 2022 - tradução do autor).
É interessante observar que no aspecto comercial e financeiro, houve uma grande parceria entre Rússia e China. Além do aspecto financeiro, já abordado no artigo "Dificuldades financeiras internacionais devido à guerra", a China está consumindo mais bens da Rússia, inclusive gás e petróleo. O gás russo que seria utilizado para abastecer a Europa está sendo redirecionado a China, sendo uma importante fonte de riqueza russa. Segundo dados da Gazprom, no primeiro semestre do ano, as entregas de gás para a China através do gasoduto Power of Siberia cresceram 60% em relação ao mesmo período do ano passado. Segundo dados da embaixada chinesa em Moscou, nos primeiros dez meses de 2022 a exportação de gás russo para a China aumentou 173% em relação ao mesmo período de 2021. Portanto, esses dados evidenciam que grande parte da ociosidade do gás russo destinado ao Ocidente está sendo redirecionado para o Leste, gerando receita para a Rússia através da commodity.
Observa-se em um espectro macro não apenas a expansão econômica e política da China, mas também a militar. Além das bases militares na África, Pequim está expandindo sua influência militar na Ásia, com o jornal The Washington Post afirmando que a China está construindo secretamente uma base naval no Camboja. Pequim, por sua vez, negou a afirmação e disse que o jornal norte-americano está propagando a desinformação. Uma base naval chinesa no Camboja aumentaria a influência de Pequim no Indo-Pacífico, tendo uma importante influência militar no estratégico estreito de Malaca.
Em maio, o ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, visitou a ilha de Samoa para reforçar laços econômicos, políticos e projetos de infraestrutura em conjunto. Por mais que Pequim negue instalações militares na região, a visita de Yi ocorre logo após a assinatura de pacto de segurança bilateral com as Ilhas Salomão em abril, após visita do ministro chinês.
O aumento da cooperação de países com a China nos segmentos econômicos, estão sendo seguidos por acordos de segurança, geralmente pouco detalhado para a mídia. A expansão militar chinesa no Pacífico, principalmente na Oceania, preocupa países como a Austrália e Nova Zelândia, muito conectados ao Ocidente.
Por fim, a China começou a utilizar uma retórica mais agressiva em relação a Taiwan, após a declaração do presidente Biden sobre apoio militar a Taiwan em caso de invasão chinesa. Lu Shaye, embaixador chinês na França, foi outro representante do governo a alertar sobre a possibilidade de um conflito militar em Taiwan, além de culpar os EUA por intensificar o cenário bélico. Segundo Shaye:
“Retomaremos Taiwan por todos os meios, inclusive militares. Se não podemos reunificar o país por meios pacíficos, o que mais nos resta fazer? (...) Taiwan não é um estado soberano. É parte integrante da China desde os tempos antigos. (...) Os americanos querem começar duas guerras no mundo: uma na Europa, outra na Ásia” (RT, 2022c – tradução do autor)
Caso Pequim escolha a reunificação por meio de uma incursão militar contra Taiwan, os EUA estarão muito limitados em sua resposta. Se o presidente Biden não cumprir o que foi dito, haverá uma perda de credibilidade em relação aos EUA e sua capacidade de proteger seus aliados militares. Se houver apenas duras sanções em relação a China, as consequências econômicas serão catastróficas para a economia mundial, colocando os EUA em uma posição delicada perante a seus parceiros econômicos, além da perda de credibilidade já citada. Se os Washington decidir por apoiar Taiwan entregando armas e equipamentos militares - como na Ucrânia -, os EUA sofrerão economicamente com tal fato, pois terão poucos recursos para financiar uma nova frente de combate dessa magnitude, uma vez que a guerra de desagaste empregada pela Rússia na Ucrânia drenou uma parte significativa dos recursos norte-americanos. Caso os EUA decidam enviar tropas para Taiwan, o que é menos provável - mas não impossível -, corre-se o risco de uma guerra generalizada. Esse fato é menos provável porque além de problemas econômicos e financeiros, o principal parceiro militar de Washington estará em crise e preso em um conflito desgastante em seu próprio continente, inviabilizando qualquer ajuda militar no teatro de operações asiático.
Caso não haja uma invasão chinesa de Taiwan, é possível que a Rússia prolongue ainda mais o conflito para que continue drenando importantes recursos dos EUA e UE. Neste caso, a China avaliará o momento mais propício, ou seja, o momento de estagnação dos recursos do Ocidente para intimar a ilha para uma anexação pacífica. Talvez, sem seus principais aliados, Taipei opte por uma anexação sem conflito e com um maior poder de barganha. Pela ótica de Pequim, uma anexação por meio da força implicará em uma massiva perda de vidas e de capital político perante a população da ilha e a comunidade internacional, o que a China quer evitar.
Esta análise de possíveis cenários é feita para que o leitor possa entender que há uma estratégia conjunta entre o Kremlin e Pequim para minar a força dos EUA como país líder do Sistema Internacional, pois independente da ação escolhida, ambos os países tem a ganhar com isso. Tudo indica que a estratégia sino-russa tem o objetivo de iniciar uma transição de poder no Sistema Internacional, resultado da debacle dos EUA em todas as suas esferas de poder (econômica, militar e política) que o mantém como liderança.
Não à toa, os EUA começam a promover uma retórica mais dura perante a China. No final de junho, a OTAN colocou Pequim em pauta em seu novo conceito estratégico, afirmando que a China e suas políticas agressivas são desafios para os membros, além de classificarem a aliança de Pequim e Moscou como uma ameaça. Em encontro no início de julho, o chefe do MI5 britânico e do FBI norte-americano classificaram conjuntamente a China como uma ameaça aos interesses nacionais de longo prazo dos EUA e do Reino Unido. O Secretário Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken, afirmou publicamente que expressou sua preocupação com o alinhamento da China com a Rússia.
Não obstante, em reunião do G7 realizada em junho, o grupo anunciou um plano de investimento de US$ 600 bilhões em infraestrutura sustentável em países em desenvolvimento. Do montante do investimento, o presidente Biden anunciou que os EUA arcariam com um terço do projeto. Esse movimento mostra a tentativa do grupo liderado pelos EUA de contrapor a Belt and Road Initiative da China. Em dezembro de 2021, a UE anunciou seu próprio plano de investimento de € 300 bilhões para rivalizar com a iniciativa chinesa. Esses fatos indicam que há um conflito reinante no campo econômico, antes mesmo do conflito russo-ucraniano ser iniciado.
Esses fatos acabam se tornado um indicador de uma grande aliança geopolítica, onde Pequim e Moscou se unem para desbancar o domínio ocidental do Sistema Internacional, juntamente com sua estrutura de dominação. No entanto, não se pode esquecer que a queda de uma hegemonia ou de uma ordem mundial instituída ocorreu em grande parte por meio da guerra. A transição de poder historicamente se deu por meio de conflitos armados. Portanto, esses são indícios que a guerra na Ucrânia pode ser uma tentativa sino-russa de moldar a ordem mundial constituída.
Rodapé: [1] Diversos equipamentos militares foram vendidos para a China. Pequim, utilizando de engenharia reversa, criou sua própria frota de aviões de combate, porta-aviões, dentre outros equipamentos similares aos modelos russos. [2] A China está se empenhando para transformar a matriz energética do país, ainda muito dependente do carvão. Nesse processo, a Rússia se transformou em uma excelente alternativa para Pequim. [3] O SPFS “[...] tem como objetivo a transmissão de mensagens eletrônicas sobre transações financeiras, um serviço garantido dentro e fora do território russo. [...] A criação de um sistema como SPFS é de extrema importância. Ele permite que a Rússia, mesmo desligada da SWIFT, possa continuar a fazer transações financeiras com seus parceiros internacionais, ou seja, o SPFS diminui os riscos geopolíticos sobre o sistema financeiro russo, permitindo o não isolamento econômico com seus parceiros.” (MAIA; MAGALHÃES, 2022)
Referências:
AL JAZEERA. China’s Xi reaffirms support for Russia’s security concerns. 2022. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2022/6/15/putin-xi-agree-to-ramp-up-economic-cooperation-amid-sanctions-k. Acesso em: 17 jun. 2022.
BABU, Juby. Heads of MI5, FBI give joint warning of growing threat from China. 2022. Reuters. Disponível em: https://www.reuters.com/world/heads-mi5-fbi-give-joint-warning-growing-threat-china-2022-07-07/. Acesso em: 08 jul. 2022.
DUA, Nusa. EUA estão preocupados com ‘alinhamento’ entre China e Rússia, diz Blinken. 2022. CNN Brasil. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/eua-estao-preocupados-com-alinhamento-entre-china-e-russia-diz-blinken/. Acesso em: 15 jul. 2022.
JOURDAN, Adam; AQUINO, Marco; SPETALNICK, Matt. Exclusive: Under Biden, China has widened trade lead in much of Latin America. 2022. Reuters. Disponível em: https://www.reuters.com/world/americas/exclusive-under-biden-china-has-widened-trade-lead-much-latin-america-2022-06-08/. Acesso em: 10 out. 2022.
LIPTAK, Kevin; VAZQUEZ, Maegan. Análise: Biden usa invasão russa para mandar mensagem clara para a China. 2022. CNN Brasil. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/analise-biden-usa-invasao-russa-para-mandar-mensagem-clara-para-a-china/. Acesso em: 26 maio 2022.
MAIA, Rafael; MAGALHÃES, Mario. Dificuldades financeiras internacionais devido à guerra. Centro de Estudos Sociedade e Tecnologia (CEST): Universidade de São Paulo (USP), v. 07, n. 02, 02 abr. 2022. Disponível em: http://www.cest.poli.usp.br/pt/boletins/. Acesso em: 03 maio 2022.
MONIN, Serguei; SCHMIDT, Thales. Com Biden em Tóquio, China e Rússia fazem exercício militar perto do Japão. 2022. Opera Mundi. Disponível em: https://operamundi.uol.com.br/politica-e-economia/74696/com-biden-em-toquio-china-e-russia-fazem-exercicio-militar-perto-do-japao. Acesso em: 26 maio 2022.
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