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A DEBACLE DO OCIDENTE: A QUEDA DO DÓLAR E A ASCENSÃO DO ORIENTE - PARTE 01

  • Foto do escritor: rafaelpupomaia
    rafaelpupomaia
  • 10 de jul. de 2024
  • 19 min de leitura

Muito já foi discutido nos artigos anteriores sobre a estratégia geopolítica da Rússia não apenas na Ucrânia, mas no âmbito mundial[1],. Importante ressaltar que os mesmos especialistas que davam a Rússia como incompetente por não vencer a guerra rapidamente, estão mudando sua visão dos eventos geopolíticos para um pensamento mais próximo ao defendido pelo blog desde o início do conflito.

Neste contexto que congrega as conclusões dos artigos anteriores, questionou-se a efetividade das sanções ocidentais, assim como a saúde financeira da Rússia para se manter na guerra neste cenário econômico adverso, ou seja, como Moscou conseguiu manter uma economia de guerra ativa com gigantescas sanções sobre sua economia? Além disso, como a Rússia conseguiu manter um equilíbrio econômico e financeiro, registrando crescimento do PIB neste cenário?

Neste sentido, a Rússia continua investindo em seu esforço de guerra contra Kiev, mas com um olhar geopolítico amplo. Sua parceria estratégica com a China permitiu além da sobrevida econômica no momento do conflito, uma oportunidade de avançar com a desdolarização e diminuir abruptamente a influência do dólar no comércio bilateral.

O movimento fez com que países influentes e não alinhados com o Ocidente seguissem o mesmo caminho, uma vez que viram o impacto do uso do dólar como medida punitiva da política externa dos EUA. Isto leva a questão principal: é possível uma transição monetária em larga escala?

Por fim, mas não menos importante, a questão cultural é crucial para entender essa mudança de esfera de influência no Sistema Internacional. Atualmente é possível observar a perda de influência dos EUA no tabuleiro geopolítico, enquanto nações orientais vêm suprindo as lacunas da falta de liderança de Washington em certas regiões do globo, mas pouco é abordado a influência da cultura neste processo.

A introdução e os questionamentos feitos acima são extremamente importantes e demandam uma ampla análise. Neste sentido, o artigo será divido em 02 partes e 04 capítulas para que as ideias possam ficar organizadas e o leitor consiga ter a oportunidade de explorar o cenário macro e as ideias defendidas pelo blog.


Capítulo 01: Sanções e economia russa - Estratégias avançadas de desdolarização


A Rússia foi extremamente sancionada desde o início do conflito na Ucrânia em fevereiro de 2022. As sanções são uma arma poderosa do Ocidente para pressionar seus inimigos e aliados a manter a sua linha hegemônica, como vem sendo feito pelos EUA desde o início do século XX. Washington atualmente apresenta três grandes pilares que mantêm sua hegemonia ativa no Sistema Internacional, são eles: o poder monetário, o poder de seu sistema financeiro (muito atrelado ao dólar) e seu poderio industrial-militar.

Nesse sentido, as sanções fazem parte de um arcabouço econômico que mantém o poder dos EUA no mundo, apresentando resultados econômicos e financeiros devastadores para a economia do país sancionado, dando início a possibilidade para a operação de um "regime change" no país afetado com intuito de colocar uma liderança pró-ocidental.

Por outro lado, alimentar o imenso poderio bélico dos EUA e seus aliados é necessário para que a gigantesca indústria militar e seus adjacentes continuem produzindo incessantemente, com o objetivo de preservar um dos principais pilares do poder do Estado norte-americano funcionando, mantendo os empregos, investimentos e desenvolvimentos na área. Este é um dos vários motivos que explica a expansão da OTAN e as erupções de guerras e conflitos constantes no período hegemônico dos EUA, assunto previamente abordado no blog[2]. Neste sentido, talvez uma Pax Romana não funcionaria para a hegemonia de Washington.

Como a Rússia é uma potência bélica e nuclear, a ideia de um confronto direto com Moscou é algo indesejado e deixado em último plano, mas há outras formas de afetar o Kremlin e as sanções são uma delas. Dessa forma, os EUA e seus aliados impuseram mais de 16.500 sanções à Rússia, mirando sua economia, sistema financeiro e sua capacidade industrial e bélica. Congelamentos de ativos russos no exterior e suas reservas em moeda estrangeiras estavam no pacote, assim como a debandada de inúmeras multinacionais do país, afetando o desempenho da economia russa.

No entanto, a principal sanção financeira foi o desligamento dos bancos russos da Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication (SWIFT), o principal mecanismo de mensagens financeiras do sistema econômico internacional. Isto resultou no desligamento do sistema financeiro russo de grande parte do mundo, tendo extrema dificuldades em realizar transferências internacionais e roteá-las para a Rússia.

A estratégia do presidente Vladimir Putin e do Banco Central russo previa um cenário desse desde 2014, colocando em seus planos de longo prazo o desenvolvimento de ferramentas que pudessem, na medida do possível, suprir tal demanda. O tema foi tratado e discutido no artigo Dificuldades financeiras internacionais devido à guerra, publicado em abril de 2022. A Rússia criou seu Sistema Nacional de Pagamentos de Cartões (NSPK) e lançou seu cartão MIR, além do Sistema de Transferências de Mensagens Financeiras (SPFS)[3] para ser um análogo ao SWIFT, ambos em 2014. Este é mais um indicativo da estratégia macro empregada pela Rússia no Sistema Internacional.

O intuito das sanções dos EUA e aliados era de sufocar a economia russa, deixando-a frágil o suficiente para que Moscou não conseguisse manter uma economia de guerra sem prejudicar abruptamente sua economia doméstica. No entanto, não se esperava que a Rússia conseguisse não ser sufocada pelas sanções, assim como não era esperado que a guerra na Ucrânia se prolongasse, tornando-se uma guerra de desgaste.

A Rússia foi impactada diretamente pelas sanções, com sua economia encolhendo 2,1% em 2022, segundo o Banco Mundial. Neste cenário, diversas empresas e marcas deixaram a Rússia, pressionando o consumo e a produção dessas marcas no país. Outro ponto de pressão foi o desligamento dos grandes bancos russos da SWIFT, impedindo que o dinheiro das exportações russas fosse roteado e enviado diretamente para o país. Não obstante, o comércio de produtos com alto grau tecnológico e que pudessem ter uso para os equipamentos militares russos foram proibidos.

No primeiro ano do conflito, as sanções demonstraram seu poder, com a economia russa entrando em recessão. Os efeitos negativos começaram a aparecer na economia com o principal sendo a inflação, que mesmo diminuindo desde 2022 ainda continua alta e estagnada, fechando em 7,8% em abril de 2024. O aumento dos preços teve impacto maior em alguns segmentos, como: produtos médicos, flores, joias, carne e produtos lácteos. A inflação somada com a escassez de alguns produtos e a constante demanda pela população, eleva ainda mais os preços. O ovo, por exemplo, teve um aumento anualizado de 40% em seu preço na Rússia.

A inflação é um problema em qualquer economia, mas na Rússia há dois fatores que pesam ainda mais o efeito negativo dessa variável econômica. O primeiro é a memória vívida da hiperinflação experimentada pela população russa após o colapso da URSS e suas consequências nefastas. O segundo é que de acordo com indicadores, uma parcela significativa dos russos tem pouca ou nenhuma poupança, sendo mais suscetível as consequências do aumento dos preços.

Tal efeito é seguido por um abrupto aumento da taxa de juros pelo Banco Central russo, que a manteve no patamar de 16% em abril de 2024, com intuito de controlar a inflação. Uma taxa de juros alta encarece os empréstimos e tende a diminuir a atividade econômica. Outro fator negativo foi a desvalorização do Rublo perante outras moedas, principalmente moedas fortes como o dólar e o euro.

O investimento e o aumento da produção militar na Rússia geraram uma situação de pleno emprego, somado a mobilização parcial de cerca de 300 mil reservistas por parte do Kremlin para serem utilizados no esforço de guerra. O aumento da produção interna de armas e o êxodo de milhares de homens que procuram evitar o alistamento criaram uma profunda escassez de mão-de-obra em algumas partes da economia. Esse cenário criou um espiral de aumento dos salários e dos preços ao consumidor.

Após as perdas e os primeiros impactos, a economia russa como um todo gozou de uma rápida recuperação, com as últimas estimativas do Fundo Monetário Internacional (FMI) projetando um crescimento de 3,2% no PIB russo em 2024 (gráfico 01). Para efeito de comparação, em 2024 o FMI estima o crescimento do PIB dos EUA em 2,7%, da Alemanha em 0,2% (gráfico 02) e da França em 0,7%, todos países que não estão sofrendo sanções e não estão em guerra.

Mesmo com os problemas que se seguiram com as sanções, a economia russa se mantém resiliente e viva, colocando em xeque a principal função da enorme gama de sanções impostas contra a Rússia.

Gráfico 01: Crescimento do PIB Russo (%) 2017 -2024 - FMI 2024

Fonte: Growth of Russian GDP (%) 2017-2024: IMF (2024)[4] - Feito pelo autor


Gráfico 02: Crescimento do PIB (%) 2017 - 2024 (Alemanha, Rússia e EUA)

Fonte: Real GDP growth (%) 2017-2024: IMF (2024)[5] - Feito pelo autor

São vários os fatores que impulsionaram a economia russa para um crescimento relevante mesmo neste cenário totalmente desfavorável, mas alguns são cruciais e valem a pena serem citados. O primeiro é que a Rússia manteve seu comércio com países parceiros, como Índia e China. Ambos os países compraram produtos e matérias-primas de Moscou, sendo responsáveis pela aquisição de cerca de 90% do petróleo russo exportado, grande parte desse comércio feito sem o dólar.

Em 2023 a Rússia superou a Arábia Saudita e se tornou o maior exportador de petróleo para a China, fornecendo a Pequim cerca de 107 milhões de toneladas métricas do produto frente a 86 milhões de toneladas métricas entregues por Riad. A exportação de petróleo russo para Pequim aumentou 24% em relação a 2022. Não obstante, em 2023 a utilização de moedas nacionais atingiu 95% do comércio total entre Rússia e China, reiterando seu compromisso de diminuir as transações em dólares.

Pelo lado indiano, Nova Delhi aumentou significativamente a participação do petróleo russo em seu mercado, atingindo 35% de toda a importação feita pelo país, frente a 23% em 2022. Em contrapartida, as vendas para a UE caíram cerca de 90%, segundo vice-primeiro-ministro russo, Alexander Novak.

De acordo com a autoridade russa, em 2023 o petróleo e o gás representaram cerca de 57% da receita total de exportação da Rússia. Em contrapartida, o Kremlin é maior exportador de trigo do mundo e deve atingir a marca histórica de 26% de market share global do produto, segundo o Conselho Internacional de Grãos (IGC). Os números expressivos mostram o quão importante é o comércio destes produtos para a economia de Moscou, assim como sua influência no mercado global.

Com este cenário, observa-se a desdolarização em curso na economia mundial. A China, o maior consumidor de petróleo do mundo, e a Índia, terceiro maior mercado do produto no mundo, aumentaram significativamente suas compras do petróleo russo, pagando mais barato e realizando as compras em suas moedas nacionais. O aumento gradativo das compras de petróelo em moedas nacionais e o uso do dólar como arma geopolítica dos EUA, ameaçam a posição da moeda norte-americana no sistema monetário no longo prazo.

Tal movimento é seguido pelo desejo de desdolarização do grupo do BRICS, que estuda a implementação de uma infraestrutura financeira e comercial própria para a realização de transações em moedas nacionais. Neste contexto, é possível observar a perda da influência do dólar e o enfraquecimento do arranjo dos petrodólares.


1.1 - Ouro e sua importância no desdolarização


Desde 2014 a Rússia iniciou uma estratégia de longo prazo que consistia em adquirir uma grande quantidade de ouro, visando um cenário com sanções mais fortes em relação as que foram aprovadas após a anexação da Crimeia, com intuito de desestabilização econômica do país. Moscou gradativamente aumentou suas reservas de ouro em detrimento do dólar. Portanto, antes da guerra na Ucrânia irromper, o Kremlin já via a necessidade de blindar sua economia, provavelmente se prepaprando para o que viria a seguir.

O ouro é um ativo seguro e que permite aos Bancos Centrais dos países diminuir a exposição aos riscos econômicos e geopolíticos em que o mundo está constantemente enfrentando. O ouro proporciona segurança contra varáveis econômicas e contra a desvalorização de moedas, inclusive se mostra como um ativo de segurança ao dólar, uma vez que permite não ficar preso as políticas monetárias e financeiras dos EUA em tempos incertos. Não obstante, o ouro tende a se valorizar em momentos de grandes crises.

Em abril e maio de 2018 a Rússia intensificou o movimento de desdolarização, reduzindo a participação do dólar e dos títulos do Tesouro dos EUA em cerca de 80% em detrimento do ouro. Em julho do mesmo ano o Banco Central russo adicionou mais 26,1 toneladas de ouro ao seu estoque, que atingiu o valor de US$ 77,4 bilhões.

Após a deflagração da guerra na Ucrânia, o governo russo facilitou e incentivou seu povo a comprar ouro como ativo de segurança, com o objetivo de evitar uma corrida para o dólar, sendo parte do escopo de desdolarização de sua economia. O governo russo eliminou o imposto de valor agregado (IVA) de 20% sobre transações de ouro para pessoa física, assim como isentou as pessoas do imposto de renda (IR) obtido através da venda de barras de ouro. Como resultado, os russos compraram o número recorde de barras de ouro em 2022, mais de 50 toneladas do minério foram obtidas, número dez vezes maior que o ano anterior. Dessa forma, o governo conseguiu substituir na sociedade russa o dólar como reserva segura de valor.

O movimento russo de compra de ouro, principalmente em detrimento do dólar, foi tão grande que a participação do minério nas reservas internacionais do país saiu de US$ 39,99 bilhões de dólares em 2013 para US$ 110,37 bilhões em 2019, segundo dados do Banco Central russo. As reservas alcançaram a incrível marca de US$ 174,52 bilhões de dólares em junho de 2024, como indicado no gráfico 03.


Gráfico 03: Participação do ouro nas Reservas Internacionais russas (em bilhões de dólares)

Fonte: Bank of Russia (2024b) - Feito pelo autor


O que torna este movimento russo de compra de ouro em substituição ao dólar ainda mais interessante é que ele foi e continua sendo replicado pela China. Moscou e Pequim permearam o topo da lista entre os principais compradores de ouro em 2019, ou seja, antes da Guerra na Ucrânia. Seria muita coincidência uma ação conjunta neste sentido do principal aliado do Kremlin, o que aumenta as suspeitas de que o movimento de diversificação das reservas internacionais chinesas está totalmente conectado com a estratégia russa de desdolarização. Portanto, o conflito na Ucrânia pode estar dentro dessa estratégia macro, como defendido em textos anteriores.

Não foram apenas Rússia e China, recentemente os Bancos Centrais de uma gama de países optaram por aumentar a participação do ouro em suas reservas internacionais como uma forma de proteção e conservação de valor frente ao cenário geopolítico incerto. É possível analisar no gráfico 04 o aumento da aquisição de ouro como estratégia de longo prazo dos Bancos Centrais, segundo dados do FMI.


Gráfico 04: Participação do ouro em ativos de reserva oficiais (em milhões de onças troy finas)

Fonte: Arslanalp, Eichengreen e Simpson-Bell (2024)


Neste contexto há uma infraestrutura financeira russa, o SPFS, já em funcionamento e que está paulatinamente se expandindo, sendo uma válvula de escape ao SWIFT e um análogo ao sistema ocidental. Este sistema no futuro pode ser um mecanismo de evitar sanções financeiras ocidentais e realizar transações internacionais em moedas nacionais.

Portanto, percebe-se que há diversas ações segmentadas do Estado russo e chinês para que essa dependência do dólar diminua e se difunda no Sistema Internacional, com outros países começando a entrar neste movimento. O SPFS e suas integrações com outros sistemas financeiros nacionais, a diminuição da reserva cambial de dólar, o aumento da reserva de ouro, a extrema diminuição do comércio em dólar nas relações bilaterais de Moscou e Pequim, dentre outras ações evidenciam que o dólar está sendo contestado e está paulatinamente perdendo força.

A guerra na Ucrânia e as sanções apenas mostraram ao mundo a utilização do dólar e da SWIFT como arma política/financeira para manter a hegemonia dos EUA. Sendo assim, a desconfiança na liderança dos EUA foi potencializada pela impotência de seus atos na guerra da Ucrânia e na inefetividade das sanções à Rússia. Tal cenário, somado a parca liderança política em Washington aumentou a descredibilidade no Sistema Internacional, fortalecendo a visão de caminhada para um mundo mais multipolar e sem o dólar como moeda regente.

Todo esse plano econômico e geopolítico russo desenhado desde 2014 tem como base uma grande parceria estratégica com a China. Grande parte da capacidade ociosa energética e de commodities russa foi direcionada para o mercado chinês, o que permite a entrada de capital estrangeiro na Rússia em moeda chinesa, abastecendo as reservas internacionais russas. A Índia também se mostrou um grande parceiro neste sentido.

Percebe-se que a estratégia de desdolarização conduzida por Moscou e Pequim está em pleno vapor. No entanto, há um aumento da dependência mútua sino-russa, neste primeiro momento mais russa do que chinesa. No futuro, talvez o cenário mude devido a importância energética e alimentar que o Kremlin terá sobre Pequim se este cenário continuar se desenhando.

No entanto, vale ressaltar que este não é um plano de curto prazo, mas sim de longo prazo. O dólar ainda é a moeda dominante no Sistema Internacional, mas os resultados e tendências dessa estratégia estão começando a ser observados devido ao cenário geopolítico internacional. No relatório do FMI publicado em junho de 2024, foi atestado que o dólar está aos poucos perdendo espaço nas reservas internacionais dos países para as "moedas de reserva não tradicionais" mais atrativas, como: dólar canadense, dólar australiano, won sul-coreano, renmimbi (yuan) chinês, dentre outras.

Dentre essas "moedas de reserva não tradicionais", a mais atraente e procurada é o yuan chinês, que está constantemente ganhando mercado. Os ganhos da moeda chinesa correspondem a um quarto do declínio da participação do dólar. Pequim também investe na internacionalização do yuan em outras frentes, como o desenvolvimento e expansão de um sistema de pagamentos transfronteiriço (CIPS), o piloto de uma moeda digital e a expansão dos acordos bilaterais de SWAPS cambiais.

O dólar ainda é a moeda dominante no sistema monetário internacional, representando cerca de 54% das reservas cambiais dos Bancos Centrais e 88% do comércio global em 2022. No entanto, todo o cenário explicado acima que leva em conta a estratégia de longo prazo sino-russa de desdolarização da economia mundial vem mostrando resultados. A paulatina diminuição do dólar nas reservas internacionais (gráfico 05) em detrimento do ouro ou das "moedas de reserva não tradicionais" mostra uma tentativa de diversificação dos Bancos Centrais, assim como indica uma certa desconfiança no dólar como ativo de reserva de valor seguro.


Gráfico 05: Participação do dólar nas reservas internacionais globais (%)

Fonte: Arslanalp, Eichengreen e Simpson-Bell (2024)


Mesmo o dólar sendo a principal moeda no mundo, é notória a queda de sua participação nas reservas internacionais globais, evidenciando que há uma desconfiança na economia global, que pode abrir espaço para uma mudança no longo prazo. Tais dados corroboram a ideia central desta parte do texto, onde há uma estratégia e um esforço conjunto de China e Rússia na desdolarização da economia, aumentando a influência do yuan e minando no longo prazo um dos principais braços de poder da hegemonia dos EUA.


1.2 - Impacto na economia russa


Outro ponto de atenção é o crescimento industrial voltado para a indústria bélica russa. Com a guerra, houve um massivo esforço e investimento do Estado russo para ampliar a produção do já tecnológico complexo militar-industrial, evoluindo significativamente sua produtividade. Tal medida fez com que toda uma cadeia de produção na economia russa fosse aquecida, aumentando a demanda por empregos, principalmente pela mão de obra qualificada.

Por outro lado, após o uso dos mercenários e presidiários no segundo momento da guerra, como explicado no artigo: Wagner Group e sua Controvésia Atuação na Ucrânia, houve a volta paulatina das forças regulares para a frente de combate. A medida fez com que o alistamento e a convocação de jovens russos retirassem do mercado uma excelente e qualificada mão de obra. O efeito foi uma taxa mínima de desemprego na Rússia, atingindo 2,6% em abril de 2024, a mínima histórica do índice. Em contraposição, o pleno emprego na Rússia também foi um dos perpetradores do aumento da inflação no país devido a pressão nos salários dos trabalhadores, uma vez que o mercado está cada vez mais concorrido.

Como resultado do crescimento da produção bélica russa, a efetividade operacional e de produção de seu complexo industrial-militar se mostrou superior ao que o Ocidente e os financiadores da guerra imaginavam. A Rússia aumentou seu gasto com defesa para cerca de 7,5% do PIB e alterou de maneira estratégica as cadeias de suprimentos do país para garantir insumos irrestritos à indústria de defesa, evitando também as inúmeras sanções impostas.

Visando cumprir com suas demandas, as fábricas russas funcionam 24 horas por dia. Moscou criou mais de 520 mil empregos no setor da Defesa, onde cerca de 3,5 milhões de russos estão empregados diretamente. É possível ver o resultado desse movimento nos próprios números, um exemplo é a produção de projéteis de artilharia. A Rússia produz cerca de 3 milhões de projéteis de artilharia por ano, enquanto os EUA e Europa juntos tem condições de produzir cerca de 1,2 milhão de munições por ano.

Martin Herem, General e Comandante das Forças de Defesa da Estônia, afirmou em janeiro deste ano que as previsões de que a Rússia atingiria o limite de seus recursos bélicos não se concretizou e se mostrou equivocada. Sua visão foi suportada pelo Chefe de Defesa da Bélgica, Michel Hofman. Ambos entenderam que a OTAN subestimou a capacidade da Rússia de sustentar uma guerra de desgaste. Por outro lado, Randy George, Chefe do Estado-Maior do Exército dos EUA, afirmou que a Rússia está se saindo bem ao priorizar, investir e revitalizar sua base industrial de defesa.

Portanto, é possível observar que uma economia direcionada as necessidades nacionais de produção militar e de insumos está se mostrando exitosa em termos operacionais e de sobrevivência econômica, mesmo com as pesadas sanções impostas pelo Ocidente. Tal fato é mais um dos indicativos que colocam em xeque a efetividade das sanções.

1.3 - Conclusão

Não se pode ignorar os impactos das sanções na economia russa, mas atualmente ela se mostra como uma economia financeiramente ativa e funcional. Todo o arranjo feito pelo Banco Central russo e as preparações observadas desde 2014 dirimiram os impactos das sanções na economia, evitando que ela atingisse seu principal objetivo de estrangular a economia russa, sufocando seu sistema financeiro e industrial, forçando assim a paralização da invasão da Ucrânia. Em relação as sanções impostas, a Casa Branca se pronunciou oficialmente no dia da invasão russa em 2022:

"Como resultado da escolha pela guerra de Putin, a Rússia enfrentará uma pressão imediata e intensa sobre a sua economia e custos enormes decorrentes do seu isolamento do sistema financeiro global, do comércio global e da tecnologia de ponta. [...] estas pressões irão acumular-se ainda mais e suprimir o crescimento econômico da Rússia, aumentar os seus custos de financiamento, aumentar a inflação, intensificar as saídas de capital e corroer a sua base industrial (...)" (FRANCK, 2022 - tradução do autor)

Neste sentido, é possível afirmar que as sanções falharam, pois não conseguiram atingir seus objetivos, ou seja, sufocar a economia russa ao ponto de fazer Moscou desistir de seus objetivos de longo prazo e da guerra na Ucrânia.

Outro ponto de atenção é que a desdolarização somada ao arcabouço financeiro pautado pelo SPFS e as parcerias bilaterais com países aliados, auxiliaram de maneira definitiva a economia russa sobreviver as pesadas sanções e ao uso "punitivo" do dólar e do Sistema Financeiro internacional por parte de Washington.

Percebe-se que houve uma preparação prévia da Rússia para o atual momento em que o mundo se encontra. Moscou se preparou de forma financeira, econômica e militar para o conflito da Ucrânia e suas consequências, o que permitiu sua sobrevivência econômica frente as maiores sanções que o mundo já assistiu.

Este cenário é mais um forte indicativo que corrobora as ideias defendidas em posts anteriores, onde a Rússia trava uma guerra de desgaste propositalmente, com intuito de drenagem de recursos importantes do Ocidente, além de escancarar o uso político do dólar e do Sistema Financeiro ao mundo, apresentando uma alternativa viável a essa estrutura "punitiva hegemônica" de Washington. A Ucrânia é um meio para atingir um fim.

Além dessas nuances, a ideia de um mundo multipolar é defendida no atual momento como uma forma democrática de unir os países que foram excluídos ou prejudicados pelo Ocidente sobre a égide da China e da Rússia. Mas, é bem possível que a estrutura de poder não se manterá multipolar por muito tempo após a queda da hegemonia de Washington pela natureza Hobbesiana do Sistema Internacional. Neste cenário, provavelmente haverá um embate entre as potências emergentes em busca da primazia.



Rodapé:


[3] O SPFS “[...] tem como objetivo a transmissão de mensagens eletrônicas sobre transações financeiras, um serviço garantido dentro e fora do território russo. [...] A criação de um sistema como SPFS é de extrema importância. Ele permite que a Rússia, mesmo desligada da SWIFT, possa continuar a fazer transações financeiras com seus parceiros internacionais, ou seja, o SPFS diminui os riscos geopolíticos sobre o sistema financeiro russo, permitindo o não isolamento econômico com seus parceiros.” (MAIA; MAGALHÃES, 2022)

[4] INTERNATIONAL MONETARY FUND. Download World Economic Outlook database: April 2024. 2024. Disponível em: https://www.imf.org/en/Publications/WEO/weo-database/2024/April/weo-report?c=922,&s=NGDP_RPCH,&sy=2017&ey=2024&ssm=0&scsm=1&scc=0&ssd=1&ssc=0&sic=0&sort=country&ds=.&br=1. Acesso em: 04 jun. 2024.

[5] INTERNATIONAL MONETARY FUND. Real GDP growth (Annual percent change). 2024. Disponível em: https://www.imf.org/external/datamapper/NGDP_RPCH@WEO/RUS/DEU/USA. Acesso em: 09 jun. 2024.



Referências:


 

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